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Do livro segundo da noite escura, de São João da Cruz 2

A alma que Deus leva adiante é uma pulsação
Frágil. Uma sombra cá fora incandescente do cárcere
O discurso, mesmo o interior, é um mecanismo
Engolido pelo amoroso gole. Faltam
Os mensageiros duráveis – não é uma falha
Da noite intensamente tecida. Na malha negra vê-se
Como nos limites raia
A perfeição – uma agulha
Uma mancha fresca retesada entre a raiz absoluta e o mais alto
Apagamento. A porta
É um batente no princípio. Nem todos entram
Da mesma forma. Sim
Que sabemos das aparências?

É necessário cobrir os olhos incuráveis – o manto
Abre-se à lixívia – uma estrela imensa. A união
É desposarmo-nos brancos
Sem palavras

Quando eu era uma criança de muletas
Estudei o alicerce de coisas paradas
Observei as coisas que se moviam
No olhar estático das coisas que meditam. Era cirúrgico
Como o homem que opera nas pupilas as artérias do seu próprio coração.
Estudei um peregrino e outro e outro. Estavam parados
Contemplavam os passos percorridos
No perímetro da meditação.
Anotei que os alicerces do movimento são líquidos
Constantes.
Primeiro líquido: a água, nas coisas altas as nuvens
E penso também nos rios. Segundo líquido: a saliva
Que curou os cegos. Terceiro líquido: o ar porque me lembro
Do relâmpago, da velocidade das coisas que caem. O sétimo líquido:
O sangue do cordeiro.

Quando eu era uma criança parada
Quando não andava numa cadeira de rodas a empurrar o corpo com as mãos
Estudei o movimento dos líquidos
Segui o derrame da semente ao morrer

Caminhasse eu porém e seguiria
O fio de água no olhar de quem amei.

Quando nadei profundamente na morte
Trouxe a mão ao cimo – era a superfície
O arbusto húmido a respirar fora das águas
A embarcação da infância
A neblina escavada ao redor da ilha desigual. Na vegetação

Que rodeia o homem solitário. Entrei profundamente
Trouxe a mão à tona da morte – o reflexo
Do remo movido sobre a agulha da bússola
O peixe que espera sobre todas as águas

Quando aquática a flor no tronco escavava
A minha última jangada nas correntes

Sento-me entre os que cantam em círculos
E decoro a melodia improvisada
E embora cante ao longo do caminho
Fico sozinho ao chegar a casa

Mesmo quando estou sentado em casa
Canto mas não sei onde vivo

Sei as margens onde as crianças cortam os juncos
Sei que a música pode salvar um homem que se afoga sem nada
Taparei rio entanto os ouvidos para descer humanamente ao fundo

Mesmo que aí a voz me seja o oxigénio necessário
Mergulharei voluntariamente na quietude ou na infância
De estar em silêncio

Quero aprender nas águas uma energia para escutar
Um instrumento sonoro, fecundo. A nervura
Da onda dobrando-se numa e .noutra e noutra
Vinda
A concha acústica do búzio que ritma a embarcação Sanguínea.
A navegação de quem avista
Uma praça fora do mundo

Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão

de Daniel Faria


mais informações em Daniel Faria

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  • Vivo em Aveiro, Portugal
  • busco com perseverança e serenidade a perfeição aos olhos da luz que me embala.
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